Na cabeça idosa de mente brilhante os cabelos ralos lutam contra o tempo, perseverantes em dividir espaço com a lucidez e sabedoria que cintilam o mesmo branco dos fios. A vida caminha casualmente para o fim desde o primeiro aplaudir dos cílios, porém quando o amor inicia o seu nascer, ele nunca se põe no anoitecer que é a morte.
A senhora que todas as tardes enfeita o mesmo jardim com a sua presença, e exala a mesma alegria da sua juventude, é a minha amada esposa. O verde do seu olhar e a vivacidade do seu sorriso esqueceram-se de envelhecer, embora as rugas façam questão de sorrir a velhice junto aos seus lábios rosados.
Respiro cansado e, da antiga cadeira de balanço, colocada estrategicamente no local perfeito da varanda, permito-me admirar as flores que são regadas e quem as molha com zelo. E outro marejar umedece tímido não as plantas, mas o meu rosto – decorado pelo tempo com as mesmas marcas, vestígios da idade mental e física.
As mãos desse pobre velho que registra cada momento ao fitá-los, as minhas mãos, tremem lânguidas enquanto equilibram nos dedos a caneta de tinta negra e o peso de quase noventa anos vividos. Na folha, que a canhestra segura, encontra-se o início do meu testamento. Seria esplêndido presentear quem viverá depois de mim com todas as minhas boas lembranças, aprendizados difíceis e lições que a vida me ensinara. Contudo, não é permitido nem possível guardar no mais seguro dos cofres toda a experiência adquirida. Somente o túmulo terá tal privilégio. Porém, o mesmo peito que guarda o ar nos pulmões com dificuldade é capaz de blindar-se contra o esquecimento. É capaz de fazê-la me amar após o fim. É o cofre onde os sentimentos se refugiam, quando a memória deteriorada os trai.
Possivelmente, a herança da vida é morte e da falta a saudade. Mas, o que realmente me conforta é ter a convicção de que a herança do amor é a eternidade. E se o eterno insiste em findar primeiro a minha vida, contento-me por ser nesta tarde agradável enquanto o sol também se põe – a morrer. A única diferença é que amanhã ele fulgurará neste mesmo manto azul anil.
Caminho calmo entre as flores até a minha querida, digo entre um apertado abraço: “Além de todos os bens materiais, a minha herança para você é o amor capaz de fazê-la tranquila. Serena até mesmo sem a minha presença”. Ela sorri amarelo sem entender e me observa voltar para a mesma cadeira, após soltá-la do amplexo. E entre um leve balanço e outro, eu durmo para a eternidade – embora ela ainda não saiba.
Pauta para edição musical, Projeto Bloínques.